O Rinoceronte, a Dama-da-Noite e o Beija-Flor

Foi certa vez, quando a dama-da-noite do quintal explodia em cheiros doces o seu esplendor de flores pequenas e brancas, que ela se lembrou de coisas às quais não podia dar nomes completos. Percebeu, então, assustada, que nem tudo do que vivera podia ser recuperado em imagens tão nítidas como gostaria.
Que marca mesmo de cigarros fumara a vida inteira?
Por mais que se esforçasse, não conseguia trazer à boca um nome convincente.
Houve um momento de aflição tão grande dentro dela que seu coração começou a bater em estranho ritmo. Levou a mão ao peito, como se querendo pará-lo, dizer a ele que logo tudo se restabeleceria.
Era uma mulher pequena, ela. Mas fora tão corajosa sempre.
Ficou ali, pensando em luas-cheias, tentando cultivar o vazio que, sem querer, se instalara por dentro dela. Segurou um cacho das flores miúdas entre os dedos e, ainda que por instantes, jurou para si mesma que nunca as vira assim, tão viçosas e perfumadas.
Nem soube responder a si mesma se ainda fumava ou não. Mas conservava uma vontade de ter um cigarro aceso entre os dedos, assim como a flor que agora apertava intranqüila. Na certa não fumava mais, a boca tão distante das tragadas fundas que um dia – intuía – dera.
Havia um fundo vazio de imagens e idéias. Quieta, respirando o cheiro insuportavelmente doce, imaginou que estivera nervosa demais por estes tempos e que, a qualquer instante, a memória voltaria. Violenta memória como um soco fosse, clara como um raio em noite de tempestade, iluminando tudo, os cantos mais quietos, o rés do chão.
O gato saltou, gordo, em direção ao muro.
Ficou olhando o gato, muda. Nada mais eram sustos, no entanto.
Era como se sua vida nunca tivesse sido. Um enorme vazio, uma miséria e uma fragilidade a surpreendia no ato de viver. Sentiu as pernas fracas, os pés doendo. Vai ver, estava doente de há muito, era isso, então…
Riu da idéia. Sabia que nunca estivera doente, uma espécie de intuição fininha vibrando sutil no cérebro agora desocupado. Sentiu saudades de beija-flores que não vira, aves delicadas, mas felizes. E, como num relâmpago, a figura de um rinoceronte lhe mostrou o mundo rude, emergindo das profundezas do seu ser. Um rinoceronte? Uniu o nome ao bicho, disse baixo assim: rinoceronte, onde estavas quando eu te vi, bicho?
De repente, a casca grossa da vida por dentro da qual ele habitava desapareceu. E só ficou nela o nome estúpido e sem correspondência: rinoceronte.
Sentia o cheiro bom, exasperado, da dama-da-noite e num outro relâmpago súbito lembrou-se do mar grande, vastidão incompreensível. Era uma manhã nublada, ela sabia. Ficara ali, olhando o mar. E sobre ele havia navios grandes, esperando na barra, ao largo, soberbos navios vindos de não sei onde, grandes criaturas sobre as águas revoltas.
Mas o mar se diluíra tal como a lembrança daquela manhã. Dela, ficara apenas o som esganiçado das gaivotas em pânico, a luz escassa e, ao fundo, os contornos de uma grande montanha.
Foi quando pensou, como se em desafio, se alguém a amara alguma vez.
Com certeza sim, imaginou sem lucidez, mas fundamente. Certamente que sim , disseram seus lábios e língua adormecidos.
E um outro relâmpago mostrou-lhe no fundo escuro da memória uma boca que sorria na penumbra, um som de voz chegou-lhe subitamente aos ouvidos. Que era afinal aquilo que lhe acontecia?
Diante da flor e do seu cheiro que ia quase se tornando insuportável, acreditava estar tendo um surto, pequeno, mas surto, de imaginações perigosas demais. Seria o perfume, meu deus?
Talvez fosse.
As pernas tentaram fugir sem pressa. Era como se fosse uma criança com medo de alguma coisa que habitava o escuro do quintal.
Foi se segurando no muro, devagar, arrastando-se para dentro da cozinha. Viu a faca brilhando sobre a pia, viu o prato azul no escorredor, passou em frente à geladeira, ao fogão, aos armários. Viu o chão quase brilhando e limpo.
E finalmente, zonza e trêmula, foi atingida pela luz crua da sala de visitas.
Os quadros na parede, o jarro com flores, as fotografias.
A filha sorria para ela no retrato; o filho distante, a nora tão delicada. Sentou-se no sofá, meio abobada ainda.
E as lembranças começaram, nítidas, a repovoar o cérebro. Uma a uma, vinham intensas, violentas, muitas delas eram cruéis. O estômago revirado pedia vômito urgente.
Não percebera que aquela flor dos diabos e seu perfume tão agudo tinham sido responsáveis por tudo aquilo?
Gostava de flores que cheiram forte, inebriara-se delas, a dama-da-noite, putana cheirosa.
Nem tinha forças para chegar até o banheiro.
Vomitou no corredor, escandalosamente.
E somente quando, a olhar desprevenido, viu seu rosto de relance no espelho, entendeu que tinham passado muitos anos.
E que o rinoceronte, casca grossa, tinha sido visto numa visita que fizera a Amsterdam.
Quanto tempo, pensou olhando-se no espelho… Mas a mesma beleza, os mesmos olhos inquietos e faiscantes, a mesma boca sem silêncios.
Só não conseguira lembrar-se do beija-flor em pleno vôo: quando?
E enquanto vomitava, dobrada sobre o vaso, pensou que de um rinoceronte ou de um navio é fácil que se lembre. Mas um beija-flor, sutil criatura neste mundo infame, este, ah beija-flor, como é difícil lembrar teu vôo em pleno ar, asas…