Os Comedores de Égua

Na roça, como em qualquer lugar, naqueles tempos de adolescência – aliás, esclareça-se, tempos em que inexistia isso de adolescência, frescura das modernices: passava-se direto da condição de menino para a de homem feito. Detalho: um menino era simplesmente um individuozinho que só tinha alguma serventia pra pegar cavalo no pasto, ajuntar o gado para a tirada do leite e pra amarrar bezerro no pé da vaca. Pras vacas de filho morto, era de obrigação providenciar o encarte, que nada mais era do que o couro da cria morta jogado no lombo de um filho postiço, pra vaca enganada deixar descer o leite, iludida pelo cheiro.
O resto do dia era brincar, fazer arapucas de taquara-poca, e tentar caçar alguma coisa a estilingadas arte difícil essa, porque estilingue é impreciso que só vendo. Quando um moleque chegava com uma rolinha tesa, morta a estilingaço, era uma glória, dado que todos reconheciam as dificuldades do tal artefato rústico e improvisado.
O estilingue era, de costume, feito de duas tiras de elástico os melhores eram de câmara de ar de bicicleta , um pedaço de couro macio: a malha, feita para acomodar o projétil (este poderia ser uma pedra dessas redondas e gastas de fundo de rio, para a caça; ou uma baga de mamona, para as guerras internas entre os meninos, porque não machuca, mas arde feito o diabo, quando atinge o alvo, usualmente a bunda. O gancho havia de ser simétrico, perfeito um epsílon grego, retirado dos galhos de uma leiteira e secado à sombra para não rachar nem retorcer. Os amarrilhos finos, caprichados, davam uma idéia da aptidão do proprietário. Conhecia-se bem um menino pela qualidade da feitura da sua arma caseira: quanto mais bem feita, mais considerado o seu dono. Hoje já se vê à venda uns estilingues modernos. Com gancho de aço, malha de plástico e elástico de uso específico, daqueles usados nos estetoscópios dos médicos, ou nos garrotes para aplicação de injeção na veia, os chamados tripa-de-mico, pela molecada.
Também se gastava o tempo em pescarias no ribeirão, com as varas de taquara-do-reino, colhidas maduras e passadas na chama de vela, enegrecendo os nós. A linha indiana e os anzóis pretos adquiridos na cidade completavam o equipamento haliêutico do iniciante. E os bagres, traíras e acarás que se cuidassem para não ir pra panela da janta, especialmente nas tardes depois de chuva, quando se costumava matar o tempo na beira d’água.
Mas isso tudo era para os meninos, esses que não prestavam para nada. Assim que se atingia uns quatorze, quinze anos, as coisas mudavam radicalmente. Ganhava-se o primeiro par de botina de carregar pela boca, e assumia-se responsabilidades de expediente integral. Acabavam-se as folgas todas, e havia contas a prestar do trabalho.
Entretanto, o que distinguia mesmo um menino dos outros era o tamanho da cinta que, sendo o normal de uma cinta, cujo fim específico era somente segurar as calças, não dizia nada. As cintas que denunciavam eram aquelas compridas, quase duas voltas na barriga, cujos furos foram feitos a prego pra poder cingir o ventre do pequeno dono de pernas finas. Essas tinham outros usos: entre tantos, serviam pra pegar as éguas e mulas, as barranqueiras que, ao sentir o couro jogado sobre a tábua do pescoço, já se davam por subjugadas e iam se acomodando de fasto no primeiro barranco baixo ou num cupinzeiro comumente encontrado nas redondezas. Tudo no mais escondido possível.
E ali se dava o namoro entre o moleque e a besta. Era tudo muito rápido, a medo, a besta nem se mexia, apenas punha o rabo de lado e aceitava a chocha penetração do pequeno membro trêmulo. Era demais de desproporcional, a besta, a bem dizer, não devia nem sentir cócegas. O moleque, contudo, se fazia homem sozinho, sonhando com o dia em que teria uma mulher de verdade, que ele imaginava linda, o corpo macio, e quente como o da besta impassível. E torcia pro tempo passar depressa, para ser homem e não precisar mais apelar para um estratagema tão reprovável e iníquo.
E era tudo mantido no mais absoluto segredo, um moleque jamais compartilhava com outro essas coisas. A besta, por sua vez, dada a sua condição própria de besta, era discreta. Se bem que, às vezes, dava de encostar em barranco em público, denunciando desavergonhadamente o cavaleiro mirim. Outras vezes, podia acontecer de ser pego em flagrante delito, a braguilha aberta, postado em cima do cupinzeiro, em indisfarçável situação. A besta esperando, amantíssima, com o rabo enviesado, escarvando impacientemente o chão com as patas dianteiras.
Era o fim do mundo quando isso acontecia. Caía-se inevitavelmente na boca do povo e, a partir de então, recebia-se a odiada pecha de “comedor de égua”. Onde quer que fosse, a referência era essa. A exposição era geral. Em casa, o pai carrancudo, a mãe envergonhada do filho. Somente o tempo e a não repetição do fato poderiam apagar o feio apelido.
No entanto, mais que sabido: todos os que dirigiam dichotes aos comedores égua, na verdade se esqueciam que eles também passaram por isso. Apenas não foram pegos no soflagrante do ato, ou todos já haviam convenientemente esquecido seus próprios deslizes. As conveniências…
No curral, de madrugada, quando se apresentavam estremunhando para ir ajuntar o gado, os moleques eram advertidos com severidade, as cintas inspecionadas, ninguém permitia uma corda extra para pegar os cavalos, só lhes davam os cabrestos curtos, pra evitar safadezas com as éguas no pasto. E então saíam para o escuro, antecipando-se ao amanhecer nevoento, medindo o passo entre os espinheiros, os taquaris traiçoeiros, em busca das vacas e cavalos para iniciar o dia na fazenda. Vez em quando, tomavam um carreirão de uma vaca enfurecida parida durante a noite, o bezerro ainda escondido no mato…
Vida de comedor de égua não era fácil, embora alguns insistam em afirmar o contrário… Além das dificuldades corriqueiras de barranquear a bicha, o escárnio e o desdém que marcavam quase que pro resto da vida…