Lisboa

Lisboa não é, jamais será uma velha cidade. Porque eterna, não tem idade. Tem alma de poeta, não envelhece. Mais do que cidade, é um símbolo. Antiga e histórica, moderna e cosmopolita. Ambígua. Surpreendente. Convivência pacífica entre o conservadorismo e o absurdo.
É um vício. Paixão descomedida. Cidade que criou raízes profundas no solo fértil da história com persistência inabalável e dorida, com cicatrizes visíveis dos seus sofrimentos. Nas ruelas misteriosas, em cada dobra que fazem, lembrança de velhos estertores. Detalhes tantos e tão ricos que torna-se impossível observá-los todos, ou o suficiente do que se alcança.
Foi ao final da tarde a chegada ao coração da cidade, quando o carro nos abriu as portas para a Sé. Sol ainda firme no céu, bem haviam dito que lá escurece tarde, no verão. Tínhamos tempo. Ao pisar a calçada, um cenário indescritível nos envolveu: turistas, centenas deles, caminhando para todos os lados, rua acima e abaixo. Pausas para fotografias, refrigerantes, cafés, contemplações atônitas. Gente colorida e característica, de todas as compleições possíveis.
De algum lugar lá no alto surgiu, repentino, um electrico. Os famosos bondinhos lisboetas, com os números indicando as linhas e os destinos. Para minha surpresa, desceu o vinte e oito, velho conhecido dos recortes de revistas. Fez sumir o movimento quando surgiu diante da igreja, majestoso, cavalheiro, deslizando em minha direção. Com aquele jeito apressado no vestido inexistente, ensaiei beijo e olhar maroto para o encontro. E ele passou, com um suspiro e um aceno, cumprimento garboso de chapéu de feltro, deixando folhas verdes entre os meus cabelos, um sorriso e lágrimas nos olhos. E tudo novamente se movimentando à volta.
A partir dali, angústia. Ansiedade que noz fazia correr, meio às cegas, a todos os pontos. As coisas explodiam diante dos olhos e ficamos perdidas, sem direção, sem saber para que olhar primeiro. Só me fui aperceber quando estava sem fôlego, muitos metros adiante, sem notar como havia chegado lá, nenhuma lembrança do trajeto na memória. Não era assim. Queria ver e, acima de tudo, sentir. Para isso tempo, muito. E serenidade, espírito expectante e humilde. Sem desabalos ou manifestações turísticas. Nenhum movimento brusco para afugentar o sonho. Pssst…
Andar macio e lento, então, como se temêssemos acordar os mortos, meio a pedir desculpas pelo atropelo e a falta de modos. De invasoras a aprendizes em segundos. Da correria entre a multidão para o circular do sangue nas veias, o bombear do coração, o som dos passos nas lisas pedras milenares. Alfama, Bairro Alto, os marinheiros, as mulheres vestidas de negro e de fado, cujas almas inda perambulam pela noite adentro, em abandono. Assim a cidade nos abriu os braços, com um sorriso terno e dourado de final de tarde, em agosto de nem sei quando.
Som de violino entre as torres do Castelo de São Jorge, levado pelo vento à cidade inteira, esparramando-se sobre os telhados tortos até chegar ao Tejo. O jovem músico, ao tocar, mal percebia o encanto que criava. Mas as notas corriam soltas pelos ares e desaguavam no rio, transformando-o num espelho d’água gigantesco onde a cidade, vaidosa senhora, refletia inteira sua beleza.
Do Castelo ao Tejo, um percurso de ruas íngremes e sinuosas, onde sobressaíam profusos cordões de roupas, parecendo estandartes a sabor do vento ribeirinho. Festival de pombos, monumentos, praças, gente e sons. A Baixa. Do cimo do Elevador de Santa Justa, a cidade sob novo ângulo. Mulher faceira, cheia de encantos. No Chiado, o olhar um tanto agitado procurava, aflito. Era meu primeiro encontro, sequer um livro trazia para ofertar a ele, ou uma flor. Apenas meu amor incondicional, ofertado ao som de clarinetas sobre um tapete vermelho.
Na Rua Garret, já de longe, via-se a placa “A Brasileira”. O Café, enfim! Minhas amigas repetiam sem parar “lá está ele!”, rindo feito crianças. Eu, míope e descompassada, nada enxergava à já então pouca luz do dia. Mais alguns passos e ele estava à minha frente, imóvel e solene, como convinha a um grande amor, um grande mito. Pessoa, Fernando. Um monumento turístico, claro, mas até o momento a personificação mais palpável do ídolo. Estávamos num dos locais que ele freqüentava, nas mesmas ruas pelas quais andava e tudo girava ao mesmo tempo nos meus pensamentos, em golfadas de idolatria muda. Peguei-me a dizer sua poesia em silêncio, um trecho de Tabacaria que contém, sozinho, a vida inteira: “… Ele morrerá e eu morrerei/ Ele deixará a tabuleta, eu deixarei os versos….” e tudo o mais.
Naquela noite sonhei poesia. Música. Ruídos de talheres e louça, burburinhos de Café e um homem, de olhar distante e atormentado, que escrevia, desordenadamente, uma sua dor qualquer, no canto de um guardanapo. E aqueles nomes todos desfilando no meu sonho: Madragoa, Mouraria, Estefânia, Apolónia, pois…
Num outro dia, os monumentos foram-se acumulando turisticamente na máquina fotográfica: torre de Belém, Padrão dos Descobrimentos, Mosteiro dos Jerónimos e tantos outros mais. Lá, entre o Padrão e a Torre, às margens do Tejo e sob um guarda-sol amarelo, ouvimos Nat King Cole, enquanto o dono do barzinho, entusiasmado, mostrava-me sua coleção completa de música brasileira, de qualidade. Enquanto isso, o sol do meio-dia evidenciava os barcos sob o céu azul, da cor da água, e tudo aquilo junto, mais a música, proporcionou-me momentos de êxtase absoluto.
E os amigos, tantos encontros, quantos abraços… jantares, almoços, passeios, conversas regadas a vinho, cumplicidade e ternura. Guerra de travesseiros entre crianças grandes, emolduradas pela vista panorâmica da cidade ao fundo, na janela. Um encontro marcado defronte à Farmácia Frazão, ponto de referência insuficiente e motivo de muitos risos posteriores. Uma prenda ofertada com carinho. Conversa a sério sobre a vida. Uma canção melancólica ao sol poente. E um coração miúdo diante da vastidão do que sentia.
Muito ainda poderia dizer da cidade. Os pastéis de Belém, os fados, as gentes. A simpatia generalizada, as construções modernas que se sobressaem, os imensos Centros Comerciais. A envolver isso tudo, uma aura de encantamento e mistério, cheirando a mofo e passado que, no conjunto, traz aos olhos do mundo uma Lisboa bela e abençoada, eternamente jovem. Iluminada, resplandecente, tal diamante exposto ao sol.
Lisboa agora me existe dessa forma: saudade aguda, fininha e persistente. Sonho de exilado em voltar para casa, para a sua gente. Um fado que se instaura no peito e arde a todo instante os olhos. A alma navegante, marinheira e desprendida, que não encontra porto em outro sítio, quer ser dela para todo o sempre. Ah, velha-moça brejeira… quando vai deixar de latejar dessa forma louca dentro de mim?