Transgressão

Ela acordou decidida. Não era sempre assim. Muito pelo contrário. Era uma moça indecisa, impotente, frágil como uma pomba ferida. Mas naquele dia percebeu, logo pela manhã, que teria coragem. Muita coisa, dentro dela, havia se acumulado e ela queria repartir, somar, doar ou qualquer outra operação que permitisse descentralizar os sentimentos.
O sol brilhava de um jeito manhoso. Nem muito, nem pouco. Era um dia propício a grandes decisões, que , do ponto de vista alheio, nem eram tão grandes assim, mas, para ela, era!
Olhou no espelho. Jogou a cabeça para um lado, para o outro… percebeu que tinha um perfil levemente melhor que o outro. Era o esquerdo. O esquerdo de dentro do espelho. O direito do lado de fora. Será que iria se lembrar? Tinha uma dificuldade enorme para reconhecer esquerdo e direito. Olhou para os olhos castanhos. Sentiu um sufoco momentâneo que era quase bom. Deveria desistir? Algo a chamava e ela queria ir.
Lixou as unhas cuidadosamente. Observou as pontas dos dedos que estancavam o sangue quente e eram capazes de tocar o infinito. Ensaiou um riso exagerado. Nada autêntico. Flexionou a boca até ficar mais formal… Melhor não rir. Melhor dizer que estava com medo. Morrendo de medo do desejo realizado. Desejo realizado deixa de ser desejo. Será que diria isso a ele?
Ele existia. Esse era o maior temor dela. Ela o havia inventado há alguns anos, mas se assustou quando deparou-se com a existência dele. E se ele adivinhasse que suas palavras masculinas comportavam o pensamento feminino dela?! E ele nem sabia que já estava criado e que isso era irreparável. E ela se via dentro dele. Se reconhecia… e talvez por isso, se afastasse. Tinha medo de encontrá-lo numa madrugada qualquer, depois de uma chuva imaginária, porque nem era preciso chover de verdade, ele tinha o afagar molhado das noite úmidas, e sabia fazer brilhar as folhas secas do outono sobre o corpo dela num silêncio de aquietar o espírito.
E a força do medo a conduziu. No céu, um pequeno arco-íris se fez. Ele nem percebeu. Mas viu algo colorido na íris dos olhos dela. E refletia nos olhos dele o germe que ela trazia nas entranhas. Os cílios se encontraram e, aos poucos, foram varrendo suavemente as inseguranças. O corpo dela amoleceu. A beleza pacífica e tímida dele a tinha dominado. Pronto. Passou a correr o risco das feridas e cicatrizes. Porque a mente até pode esquecer a lembrança das coisas, mas o coração carrega as cicatrizes. Não sai. O pensamento pode abolir. Mas o coração sustenta.
Um raio de luz atrevido atravessou o quarto, riscou a intimidade do branco e tatuou um arco-íris no lençol, outro no braço dele, outro na perna dela… e infinitamente se multiplicaram e brilharam feito purpurina com uma luz que não era própria. A carne ficou cheia de caminhos que já estavam delineados mas que talvez, se modifiquem noutra viagem, noutros passos, noutros encontros… talvez até encontrem outros rumos e penetrem a alma. E aí, quem sabe, eles aprendam a ler as pequeninas partes das células que compõem a vida e até descubram um universo dentro do corpo.