(VIAGEM MUITO DOIDA PELOS ANOS SESSENTA)
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COMO SE CONHECERAM OS QUATRO AMIGOS
Por uma conjugação de circunstâncias – morarem na zona Sul do Rio de Janeiro e passarem as férias na cidade serrana de Teresópolis -, a partir da mais tenra adolescência, Marcos “Quatro Olhos”, Daniel “Maracanã”, Afonso e Renato “Piroca” constituíram uma “turminha” que tão-somente as duras vicissitudes da vida conseguiram, anos depois, dissolver.
Como se conheceram os quatro amigos? É o que veremos, prezado leitor. Comecemos por Marcos e Afonso, amigos de infância, ou melhor, herdeiros dos liames indestrutíveis que uniam as suas mães desde a Escola Normal, onde se conheceram. Mais de um capítulo gastaríamos para descrever aquela amizade singela que, não fosse a trágica morte da mãe de Marcos, vítima de incurável doença, perduraria até o dia de hoje.
Nascidos com diferença de poucos meses, Marcos e Afonso foram, já no primeiro ano de vida, companheiros de praça; depois, colegas de jardim de infância, passando para condiscípulos do curso primário – em boa escola inglesa cujo proprietário viu-se, anos mais tarde, envolvido em intrincado processo por corrupção de menores; arqueólogos do futuro dificilmente acharão traços do colégio, demolido para a construção de impávido espigão com vidro fumê e outros modernismos. Meninos inteligentes, jamais foram reprovados e sequer ficaram alguma vez em segunda época. A disciplina doméstica também colaborava: para cada nota abaixo de sete, uma semana sem ver televisão! Nada mais frustrante do que, no colégio, não poder participar das empolgadas discussões do episódio anterior de “Os Intocáveis”. Mais do que frustrante: humilhante. Juntos cursaram o ginasial, desta feita em conceituado colégio da praia de Botafogo, com piscina semi-olímpica e amplo ginásio de esportes, famoso pelos troféus arrebatados nos Jogos da Primavera. Companheiros de turma durante dez anos, do jardim de infância ao quarto ginásio, a decisão de Marcos (contrariando o parecer unânime do pai e dos amigos) de ingressar no curso clássico acabou por separá-los.
Cabe uma breve alusão aos comentários depreciativos à opção pouco ortodoxa de Marcos de seguir estudos na área das ciências humanas, tradicional reduto feminino. “É preferível tirar último lugar no vestibular de Engenharia ou Medicina a tirar o primeiríssimo lugar no vestibular de Filosofia ou Letras”, ponderou o pai. Os amigos foram mais incisivos: “curso Clássico é carreira para mulheres e bichas”, ao que Marcos filosoficamente retrucava: “o que seria do verde se todos só gostassem do azul?” No frigir dos ovos, acabaram invejando Marcos, único homem numa turma de primeiro clássico cheia de mulheres. Um harém!
Logo depois de ingressarem no colégio da praia de Botafogo, os dois amigos de infância conheceram Daniel, aluno do estabelecimento desde o remoto pré-primário. O pivô da amizade: o jogo de futebol de botões.
Marcos não era lá um grande mestre nesse jogo, mas conseguia uma ou outra vitória. No futebol real, aí sim, era verdadeiro “perna de pau”. Para compensar a deficiência no esporte das multidões, desenvolveu o interesse em seus simulacros: não só o futebol de botões, como também o futebol de totó – nesse, sim, “dava banho”!
Marcos colecionava “jogadores”: de galalite, de fichinhas roubadas dos ônibus, pacientemente lixadas, ou mesmo de plástico vulgar. Não se contentava com um time do Botafogo, recente campeão da Copa Rio-São Paulo, do Flamengo ou do imbatível Santos; era “dono” da seleção brasileira, duas vezes campeã na Copa do Mundo e que, se Deus quisesse – e ninguém duvidava das boas intenções divinas – seria tricampeã em 1966. A um botão que se sobressaía pelo negro de ébano, denominara Pelé; outro menorzinho mas ótimo de drible representava Garrincha. Tinha também o Vavá, o Didi, da “folha seca”, e todo o panteão de semideuses que, conforme Marcos anos depois compreendeu, durante dolorosa sessão analítica que quase o levou às lágrimas, simbolizavam um “lado másculo, poderoso, varonil” que jamais conseguiria plenamente desenvolver.
Daniel, por sua vez, tinha paixão pelos esportes e, mesmo, por alguns jogos menos edificantes, incluindo a sinuca. Entre os porteiros da rua, corria a notícia de que Daniel, vez ou outra, trocava os colegas da rua, gente de boa família, pelos moleques da favela do bairro para uma boa pelada. Alguns mais maldosos chegavam a insinuar que a razão do estranho fascínio de Daniel pelo submundo do morro estaria em uma erva maldita fumada pelos negros, hábito que os seus antepassados escravos assimilaram dos índios e que, a longo prazo, levava à loucura. Não vamos, porém, dar crédito a esses maldizentes. Daniel organizava no prédio longos torneios de futebol de botão, com juiz, calendário, turno e returno, primeira e segunda divisão, como no futebol de verdade. Tão logo deparou com o novo colega de turma, tão cioso de sua “seleção brasileira”, imediatamente o convidou para o campeonato daquele ano. De fato, os campeonatos organizados por Daniel varriam o ano: a final nunca era disputada antes de novembro. O síndico amiúde tentara proibir as partidas, alegando atrair “maus elementos” para o prédio, mas a mãe de Daniel conseguiu persuadir a maioria dos condôminos a votar contra a impopular medida. Chegou a tachar o síndico de “racista”, ao que esse respondeu que “sou racista sim, e daí? preto, quando não suja na entrada, suja na saída, e alguém vai me contestar?”
Marcos e Daniel diferiam diametralmente no aspecto físico – o primeiro sendo franzino e o último, musculoso -, no comportamento, Marcos sendo tímido e Daniel, “atirado” e nos pontos de vista. Daí, quem sabe?, a sólida amizade desenvolvida entre eles, explicada pela atração dos opostos ou pelo mecanismo da simbiose, comum no reino animal. Daniel “Maracanã” tinha os pais separados, fato que a sociedade da época não via com bons olhos. Uma breve digressão: a alcunha “Maracanã” se devia aos torneios que organizava; aliás, Daniel vangloriava-se de ter sido o único de sua turma presente no grandioso estádio por ocasião da tristemente célebre partida em que o Brasil perdeu a Copa do Mundo para o Uruguai, na final; a alegação de Daniel não deixava de ter o seu fundo de verdade: estivera presente na fatídica disputa, mas como feto, na barriga da mãe! Seu pai, segundo suas próprias palavras, resolvera “trocar a mulher de quarenta anos por duas de vinte”, o que, à luz da matemática, tinha lá sua lógica! Facécias à parte, o pai de Daniel, Sr. Rodolfo Santorini, não deixava de ter suas justificativas, dado o envelhecimento prematuro da senhora Carmela Santorini, dona de buço um tanto quanto espesso, em se tratando de pessoa do sexo feminino, além do peso desproporcional à altura, o que se explicava pela excessiva ingestão de calzones e canelones e capeletes e espaguetes e outras especialidades da culinária italiana.
Do pai, carcamano da Sicília, vindo para o Brasil num convés de quarta classe e que, começando como aprendiz do que lhe aparecesse pela frente e economizando pacientemente tostão após tostão, acabara montando uma confecção de camisas no subúrbio – não fabriqueta de fundo de quintal, mas manufatura com quase trinta costureiras, crédito na praça e representantes nas principais capitais do Brasil -, Daniel herdou os cabelos negros e encaracolados, a voz de tenor de ópera, os lábios carnudos e sensuais de artista de fita italiana, o tronco robusto, os bíceps desenvolvidos e a saúde de ferro, que lhe permitia andar descalço, beber gelado e pegar chuva sem se resfriar. Também adquirira do pai o anticlericalismo e a esperança numa sociedade mais justa. Da mãe, herdou o apetite voraz. A prática incessante do futebol, entretanto, não o deixava engordar.
Quanto a Marcos “Quatro Olhos” (assim apelidado em virtude das grossas lentes dos óculos), diferia radicalmente desse verdadeiro semideus, a começar pelo pai, brasileiro de muitas gerações, criminalista de escol, autor de monografias consagradas, adepto das teses lombrosianas – segundo as quais a propensão para a criminalidade seria inata, podendo ser fisionomicamente inferida -, homem cuja fé religiosa não se abalara sequer com os trágicos acontecimentos que cercaram a morte da esposa. “Deus escreve reto por linhas tortas.” Tudo em Marcos denotava fragilidade, a começar pelo tronco magérrimo, exibindo o contorno de algumas costelas. Tinha pernas de avestruz, sempre um passo à frente do acompanhante, por mais que este se apressasse; rosto pálido com olheiras que os óculos mal disfarçavam, produto de leituras pela noite a dentro; cabelos bastos e indomáveis (na tenra adolescência, Marcos tentara domesticar a melena pela aplicação de henês, cremes, brilhantinas; ante a rebeldia dos cachos selvagens, porém, acabou resvalando no extremo oposto de total desleixo, sendo um precursor da moda dos cabelos longos de alguns anos depois; lentes de óculos excessivamente grossas para a idade, a miopia servindo-lhe de pretexto para escapulir aos esportes, aos quais tinha ojeriza (exceção feita aos esportes de mesa).
Marcos “Quatro Olhos” e Daniel “Maracanã” logo se tornaram inseparáveis amigos, este último abrindo-lhe acesso a um mundo anteriormente vislumbrado, mas no qual não ousara resvalar sem a companhia experiente de um guia: a favela, mirante privilegiado sobre o morro que separa Copacabana, Ipanema e Lagoa, com suas biroscas onde rolava a cachaça, o passaporte para longas palestras, seus paus- de-arara contadores de “causos”, seus pretos parrudos contando suas façanhas prenhes de valentia ou as de tataravôs do tempo dos escravos, quando se vivia mais de cem anos. Marcos “Quatro Olhos” e Daniel “Maracanã” descobriram, na cultura popular, colorida, ruidosa, apimentada, “sábia” sob certo aspecto, a alternativa para um mundo pequeno-burguês que se petrificara em seu convencionalismo, sua mesquinharia, sua pequenez de propósitos, sua carência de ideais… Daí para o marxismo, no caso de Daniel, e para o misticismo e a contracultura, no caso de Marcos, foi uma questão de evolução. Por que o afã de Daniel em iniciar o franzino amigo nos seus segredos?