Prazer de Voar

Ele sempre irrompia de repente, como do nada, voando entre os carros na avenida de intenso trânsito, no fim da tarde. Não tomava nenhum cuidado, dava guinadas repentinas, arremetia, o cambaleio era motivo para impensáveis acrobacias buscando o reequilíbro momentâneo; adernava e alteava perigosamente, estonteado por sabe-se lá que bebida tão poderosa. O olhar de estupor. Simplesmente voava vertiginoso de braços abertos, numa posição esquisita: levantava os ombros ossudos, afundava a cabeça entre eles, os cotovelos altos, quase à altura das espáduas, formando um ângulo reto com os braços, e as palmas brancas das mãos voltadas para trás. O jeito todo de uma ave prestes a se lançar no abismo do ar. Em meio ao tráfego, enquanto sobrevoava solene os capôs dos carros atônitos, executava uma espécie de dança desafiadora, precisa, leve e gingada, encimado nas pontas cambaias dos velhos sapatos. As pernas longas, o ritmo doido da embriaguez. A camisa aberta no peito, enfunada, mostrando seu corpo magro e escuro, dava a idéia vaga de penas estufadas, como se um grande pássaro negro em exibição pré-nupcial. Parecia mesmo um tuiuiú do Pantanal no seu vôo mole e rasante, o puro prazer de voar.
Além daquele voar imprudente entre os carros, nunca soubemos o seu nome, de onde vinha ou o que fazia. Suas mãos escalavradas, no entanto, eram de trabalhador braçal. Afora os xingamentos dos motoristas irritados, aos quais ele não dava a mínima, já fora atropelado várias vezes. Então, ficava estendido quieto na sarjeta até ser socorrido, os olhos piscando seguidamente, como uma ave atingida, subitamente privada de sua capacidade de voar. Os olhos embaçados pela bebida não denotavam dor ou qualquer outro sentimento.
Sumia por uns tempos. Mas sempre ressurgia, com suas cicatrizes já bem fechadas, para retomar seus vôos temerários.
Hoje, creio que sua carreira aeronáutica se encerrou. O carro o colheu em cheio, em pleno exercício do vôo, quando se preparava para o ápice da sua exibição aérea: os passos ritualísticos daquela estranha dança. O trânsito parou. Corremos para socorrê-lo. Ele estava imóvel e quieto, como das outras vezes, mas desta vez sangrava abundantemente pelo ouvido, e seus olhos estavam abertos e fixos como os de um pássaro morto.