Um Pouco o Coração do Mundo, um Pouco Bailarina

Ah, eu sei: é tempo de descalçar sapatos, este.
Tempo de examinar a bolsa, fazendo faxina, bolsa de mulher é mesmo cheia de tanta coisa, papel aqui e ali, remédio pra dor de cabeça, dezenas de canetas inúteis, lápis que jamais serão usados, um batom que é a nossa cara, um hidratante, uma carta, um perfume e uma cópia de email pra se ler, ler e reler. Bolsa de mulher é puro enigma.
É tempo de me sentar diante da tevê e nem tever, só devanear pensando viagens, ah se eu tivesse coragem, juro que iria ao encontro do Taj Mahal, aquilo sim, é prova de amor que todas queremos, construir um templo pra mulher amada, deixar o mundo inteiro olhar sem compreender quase nada do que somos capazes por um grande amor.
Mas tiro os meus sapatos, meias.
Sorrio ouvindo Vivaldi, embora eu tenha costume, ainda, de ouvir Mozart no carro, na Dutra, ouço Vivaldi em casa. Mozart é para dias de grande solidão, Vivaldi é a mais pura luz, aprendo. Vivaldi e os pés fora do sapato, Vivaldi assim, de olhos fechados, Vivaldi me traz lembranças do que nunca houve nem haverá.
É tempo, eu sei, de descalçar os sapatos machucadores que trilharam caminhos pelos quais nunca mais retornarei. Vontade de dizer, sei lá pra quem: olha aqui, descalcei os sapatos, tirei as meias e Deus ri pra mim de novo no meio da tempestade, me livra dos relâmpagos e trovoadas, me agasalha, brincalhão que Deus é, da queda do precipício em que eu poderia ter escorregado.
A vida é sempre assim, um quase passo em falso? Este quase escorregão, este medo, esta coragem?
Eu poderia ter feito tanta coisa que não fiz, mas na última hora, escolhi eu mesma descalçar os sapatos, jamais outra vez esta mão me balançando sobre os abismos, a fúria cega dos descuidos, o descabimento dos anseios.
Reviro minha bolsa, procurando fotografias que não há. Às vezes, por sorte ou capricho, o melhor ou o pior de nossas vidas não se registra, a fim de que jamais tenhamos saudade ou dor. Às vezes, descalços, reconhecemos que no porta-retrato vazio está o nosso melhor retrato, aquele que nunca acontecerá. Mas é justamente este o que mais se presentifica, uma espécie de relógio que toca e marca as horas, mas que nunca saberemos onde esteja, no andar de cima ou de baixo, sem que, no entanto, deixar de ser acusador-indicador de que o tempo passa, passará tudo o que nos torna tristes, este Vivaldi no ar, esta primavera e seus jasmins que são soluços, estes sustos de novembro.
Fecho os olhos, os pés descalços, um jasmineiro em flor dentro de mim. Aos poucos sei que é preciso aceitar o perfume sem que se veja a flor. E esses soluços que se guardam em gavetas, e esta vida que voa como borboleta, este casulo, este pássaro, este grão-grânulo, este pêndulo.
Fecho os olhos e sei que a vida é cheia de descaminhos.
Mas sei também que é impossível não acreditar em recomeços, recomeçamos todos os dias, nosso destino humano é sempre isso.
Guardo os sentimentos na bolsa, ao lado de felicidades pequeninas; descalço os pés cumpridores como se fossem os pés de uma menina: bailarina, bailarina.
E ouço o coração do mundo que me chama.
Ouço e corajosamente vou.