Dias Seguidos de Chuva

Dias seguidos de chuva. À noite, um ventinho mais frio insiste em cutucar meus pés por sob a coberta. Fecho os olhos e fico a imaginar o alvoroço das plantas recebendo cada gotinha em suas folhas, há tempos secas. Fecho os olhos e não consigo deixar, a exemplo do poeta, de ouvir o anjo a sussurrar: “vai ser gauche na vida”. Diferentemente dele, com um intervalo de tempo muito maior!
Foi neste estado , entre vigília e sono, que a visão nítida da mulher me assaltou. Já havia me esquecido por completo do episódio. Dado o caso como algo sem importância nas 24 horas da vida de uma pessoa. Mas lá estava ela, novamente, sorrindo e gesticulando.
Estava cansada de ficar curvada sob um livro buscando sustentação para meu trabalho. Aborrecida de desenhar letras na tela fria e teimosa do computador. Pela porta aberta de meu escritório via a chuvinha ora fina ora grossa regando meu jardim. Resolvi andar um pouco. Tomar um café no templo do consumo de minha cidade.
“Isto é coisa de paulista”, insistia uma conhecida, “Mania de tomar café nas esquinas!”. Afirmava tão categoricamente esquecendo-se que ,na verdade, esta é uma prática muito comum em qualquer canto do mundo. Com esses pensamentos bailando na cabeça, bebericava meu expresso sem açúcar, quando aquela figura esguia e salpicada pela chuva atraiu minha atenção.
Tinha um semblante tão tranqüilo! Comia seu pão de queijo e tomava seu café como se estivesse degustando das iguarias dos deuses. Tinha porte principesco, aquela senhora! Mas o que me atraia nela, o que me obrigava a sempre voltar a cabeça para lhe observar, era o simples fato de que ela falava sozinha. Gesticulava com uma das mãos, sorria suavemente, meneava a cabeça, tudo como se estivesse de seu lado um interlocutor.
Em que fantasias, em que ponto do passado estariam perdidas suas lembranças felizes? Com qual personagem de sua história de vida ela estaria dialogando? Seria sempre o mesmo, o acompanhante invisível a meus olhos insensíveis? Ou será que haveriam por ali anjos, que minha fé miúda e fraca, não conseguiam distinguir? Podia perceber um quê angelical em seu sorriso, uma delicadeza celeste em seus gestos!
De repente ela se voltou para mim. Senti-me constrangida, como uma criança pega em flagrante, já que a estava observando abertamente. Num movimento rápido e sutil pousou suas mãos em meu braço esquerdo e detonou: “Nunca me viu, cara de pavio??” Afastou-se garbosamente.