Kosovo: que história é essa?
Infelizmente, parece que há uma crescente desvalorização da história. É cada vez mais rara a lembrança dos processos históricos que formaram o contexto atual. Esta falta de historicidade no pensamento das pessoas é mais grave quando estas se põe a pensar sobre a sociedade em que vivem. Como afirmou a filósofa Marilena Chauí um dia destes, comentando a atual reforma da educação no Brasil, parece que as pessoas acham que os problemas de nossa sociedade são dados da natureza, como a montanha ou os oceanos, estão aí e pronto. Assim acontece com as reformas do governo, com a globalização, com a violência …
É o que vem sendo feito na análise da imprensa, com algumas exceções, sobre o choque entre a Sérvia e sua região autônoma, Kosovo, com a intervenção da OTAN. Raramente ouvimos falar de como surgiram os desacordos entre os sérvios e os kosovares albaneses, o que acaba dando a impressão que de uma hora para outra tudo que era paz se transformou em guerra. Na tentativa de ir contra esta tendência de esquecimento do passado, trago a seguir algumas lembranças que devem pairar sobre as cabeças de sérvios, kosovares albaneses, croatas, eslovenos, montenegrinos, macedônicos, gregos, turcos e outros povos envolvidos direta ou indiretamente nos conflitos dos Balcãs nesta última década.
A região dos Balcãs, cadeia montanhosa localizada no sudeste da Europa, foi ocupada por eslavos a partir do século VII. Posteriormente, este povo foi cristianizado. Aqueles que habitavam as regiões onde hoje estão a Croácia e a Eslovênia tornaram-se católicos, enquanto o restante passou a seguir a igreja cristã ortodoxa, então sediada em Constantinopla, atual Istambul (Turquia). Entre os séculos XII e XV, a região foi repartida entre o domínio do Império Austro-Húngaro, que ficou com a Eslovênia e a Croácia, e o Império Otomano, que ficou com o restante. Aliás a luta dos sérvios contra o domínio otomano se dá na região de Kosovo, que se torna o símbolo da resistência deste povo.
Acontece, então, a primeira grande diferenciação entre estes povos. Aqueles dominados pelo império europeu tornaram-se mais abertos à mentalidade ocidental, enquanto os outros ficaram mais fechados e voltados para a cultura oriental. Foi também a partir desta época que se constituíram grupos islâmicos na área.
O império Otomano era constituído de uma infinidade de etnias e nacionalidades. Mas isso não era problema antes dos séculos XVIII e XIX. Principalmente no século XIX, teve início a queda destes impérios, em contrapartida à ascensão da idéia de estado-nação. Finalmente com o fim da primeira guerra mundial, forma-se o reino dos sérvios, croatas e eslovenos, que englobava um território muito próximo ao que se tornou a Iugoslávia.
Neste reino já têm início conflitos entre os diversos grupos étnicos. eslovenos e, principalmente, croatas se revoltam contra o poder do rei Alexandre I, pelo fato deste ser de origem sérvia. Em 1929 o rei muda o nome do país para Iugoslávia, na tentativa de impor a nacionalidade iugoslava, que seria a única reconhecida a partir de então e até 1945, sobre a croata, a eslovena, a sérvia, a montenegrina, a macedônica e a muçulmana. Não funcionou e o rei foi assassinado por nacionalistas em 1934.
Durante a segunda guerra mundial há nova divisão na Iugoslávia, a croácia se alia às forças do eixo, enquanto os sérvios se declaram contrários a elas e são invadidos. Nesta época, a Albânia estava também aliada às Alemanha e Itália. Com isso, os sérvios moradores da região de Kosovo foram expulsos, dando lugar a uma maior quantidade de albaneses que atravessaram as fronteiras. É neste momento que a população de origem albanesa se torna majoritária em Kosovo.
Entre 1941 e 1944, as forças contrárias à ocupação da Iugoslávia pela Alemanha, lideradas pelo Marechal Tito, conseguiram expulsar os nazi-facistas sem a ajuda dos aliados. Em 1945 é proclamada a república Iugoslávia, formada por seis repúblicas federadas: Sérvia, Croácia, Eslovênia, Montenegro, Macedônia e Bósnia-Herzegóvina.
Tito, um líder autoritário e carismático, conseguiu administrar as diferenças étnicas e conter os nacionalismos. Para isso colocou o socialismo como ideal superior ao do nacionalismo e deu maior autonomia a cada uma das repúblicas, diminuindo, inclusive o poder da Sérvia, ao criar as regiões autônomas de Kosovo e Voivódina. Porém, Tito nunca reconheceu Kosovo como república federada, apesar de ter 90% de população albanesa, não podendo assim ser considerada uma minoria étnica.
O cuidado em não dar total autonomia a Kosovo é devido a dois fatores. Primeiro pelo significado histórico da região para o povo sérvio, que inclusive era maioria ali até a segunda guerra mundial. Mas também por causa da conhecida intenção da Albânia em formar a Grande Albânia. Esta englobaria os territórios da atual Albânia, o de Kosovo e os de maioria albanesa na Macedônia, Montenegro e Grécia.
Em 1981, logo após a morte de Tito, começam a acontecer revoltas nacionalistas em Kosovo. No final da década de 80, Islobodam Milosevic sobe ao poder na Sérvia, com um programa nacionalista. Este governo nacionalista tira a pouca autonomia que tinha Kosovo. Neste contexto, formam-se nesta região movimentos políticos pró-independência, mas também grupos paramilitares de guerrilha, como o ELK (Exército de Libertação de Kosovo). Estes últimos passam a matar soldados sérvios que ocupam a região, a partir de quando passam a ser violentamente reprimidos pelo exército sérvio.
Assim como nas guerras entre a Sérvia e a Croácia e a Sérvia e a Bósnia, ocorridas na primeira metade da década de 90, a situação de Kosovo representa séculos de choques entre os povos da região. A história dos conflitos entre estes povos ainda não acabou, existe muito por ser resolvido. Mas parece que os lideres da OTAN não têm consciência desta história, tendo a ilusão de que com uma sequência de bombardeios conseguiriam civilizar aquela barbárie. O resultado é que as mortes aumentaram muito desde a intervenção da OTAN e os problemas continuaram existindo, vide o apoio da população sérvia a Milosevic, que aumentou deste o início dos bombardeios.