Mesmo tendo sido esquecida temporariamente pela grande imprensa, a questão agrária continua pipocando no cenário político do país, embora com menos intensidade que nos últimos anos. A impressão do desmantelamento daquele barril de pólvora que envolveu o massacre de Eldorado, a marcha para Brasília e tantas invasões de órgãos públicos e propriedades rurais não-produtivas é de grande interesse para o atual governo. No entanto os conflitos continuam existindo no campo, vide a notícia dos saques há três semanas em Porto Feliz e a reportagem sobre a violência contra os sem-terra no Paraná (que envolve prisões arbitrárias e até torturas), publicada na última edição da revista Caros Amigos.
Em seu primeiro mandato, FHC declarou ter assentado 280 mil famílias, porém destas 100 mil já estavam na terra e tiveram apenas sua situação regularizada. Mesmo as 180 mil restantes são um grande marco na história da reforma agrária brasileira, tão defasada se comparada a dos outros países do mundo. Mas este marco não foi atingido unilateralmente pela vontade do governo federal em resolver o problema fundiário brasileiro. Foi através da luta dos movimentos sociais pela terra que este número foi alcançado, ou seja, pela pressão do MST (Movimento dos trabalhadores rurais Sem Terra), de partidos políticos e de organizações não-governamentais.
Nosso país está sendo reformado. Devemos sempre lembrar que uma reforma está ligada a um projeto escolhido entre inúmeros possíveis. O projeto para o Brasil é o de inserção na economia global a todo custo e do jeito que for possível. Neste contexto de reformas o governo agora quer reformar a reforma agrária.
Até o momento há uma lei que determina a desapropriação de terras improdutivas para fins de reforma agrária. Esclarecendo alguns pontos:
1 – Terra improdutiva é uma classificação do INCRA (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) para designar propriedades que, analisado o seu potencial produtivo e a produção que está sendo efetivada, são subutilizadas, ou seja, provavelmente estão servindo para reserva de capital e não para produzir alimento e dar emprego.
2 – A desapropriação não é a tomada das terras, é a compra das terras de seus proprietários pelo governo, este paga pelas terras com títulos da dívida agrária, resgatáveis em vinte anos. Quer dizer é como se os proprietários recebessem um cheque pré-datado para vinte anos, mas com a possibilidade de negociar este papel no mercado financeiro e nas privatizações.
3 Lei é uma norma ou conjunto de normas votado pelo poder legislativo (que representa o povo) e que deve ser seguido por todos as pessoas, físicas ou jurídicas, inclusive pelo governo. Portanto, considerando-se que boa parte do território nacional é tida como terra improdutiva, o governo teria muito ainda a cumprir, principalmente lembrando que há mais de 600 mil famílias inscritas como candidatas à terra no MST, das quais 60 mil estão acampadas em beira de estradas, vivendo sob barracas de lona preta.
Mas o que surge agora é o Novo Mundo Rural. Este é um projeto governista que muda o programa da reforma agrária. Para isto será criado o Banco da Terra, responsável por financiar os lotes para os camponeses, que passarão a pagar pela terra, um modelo parecido com o do BNH, que atuou na habitação. Agora a terra não será mais desapropriada com títulos da dívida agrária, mas sim comprada dos grandes proprietários pelo preço de mercado e em dinheiro. Como grande parte destes proprietários não utiliza suas terras, a não ser como reserva de capital e calção para empréstimos bancários, haverá um corrida de candidatos para vender terras, da mesma maneira que há uma lista para ter a terra. Só que há uma diferença, os primeiros, proprietários que têm terra e não a utilizam para criar empregos e produzir alimentos, estarão conseguindo trocar suas terras por dinheiro; enquanto isso os camponeses sem terra, presentes na segunda lista, estarão se endividando por muitos anos para poder sobreviver e produzir alimentos para o restante da população.
Mais uma vez a reforma feita no Brasil está servindo para beneficiar alguns grupos em detrimento de outros, maiores e mais necessitados de uma melhoria de suas condições de vida. Da mesma maneira que ocorreu no século XIX, quando o governo imperial decretou a lei de terras (1850), que limitava a possibilidade de obtenção das terras devolutas à compra, beneficiando os fazendeiros e antecipadamente compensando sua futura perda de escravos, o governo atual recompensa os grandes proprietários pela perda de suas terras fazendo os camponeses pagarem por elas. A diferença é que hoje este ato político arcaico está camuflado pela onda de reformas e pela idéia da modernização pró- globalização.