Você sabe que hoje os vestibulares valorizam muito a intertextualidade, ou seja, textos que evocam outros. Não confunda intertextualidade com cópia ou plágio barato, por favor. Observe estes dois textos abaixo:
Texto 1- Fragmento de O Velho do Restelo, Camões
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Qual vai dizendo:- ó filho, a quem eu tinha
Só para refrigério, e doce amparo
Desta cansada já velhice minha,
Que em choro acabará, penoso e amargo;
Por que me deixas mísera e mesquinha?
Por que te mim te vais, ó filho caro,
A fazer o funéreo enterramento
Onde sejas de peixes mantimento?
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Qual em cabelo: – ó doce e amado esposo,
Sem quem não quis Amor que viver possa,
Por que is aventurar ao mar iroso
Essa vida, que é minha, e não é vossa?
Como por um caminho duvidoso
vos esquece a afeição tão doce nossa?
Nosso amor, nosso vão contentamento
Quereis que com as velas leve o vento?
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Nestas e noutras palavras que diziam
De amor e de piedosa humanidade,
Os velhos e os meninos os seguiam
Em quem menos esforço põe a idade:
Os montes de mais perto respondiam
Quase movidos de alta piedade,
A branca areia as lágrimas banhavam
Que em multidão com elas se igualavam.
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Nós outros sem a vista alevantarmos
Nem a mãe, nem a esposa, n’este estado,
Por não nos magoarmos, ou mudarmos
Do propósito firme começado:
Determinei de assim nos embarcarmos
Sem o despedimento costumado;
Que posto que é de amor usança boa,
a quem parte, ou fica, mais magoa.
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Mas um velho de aspecto venerando,
Que ficava nas praias, entre a gente,
Postos em nós os olhos, meneando
Três vezes a cabeça, descontente,
A voz pesada um pouco alevantando,
Que nós no mar ouvimos claramente,
C¹um saber só de experiências feito,
Tais palavras tirou do esperto peito:
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_”Ó glória de mandar! Ó vã cobiça
Desta vaidade a quem chamamos fama!
Ó fraudulento gosto que se atiça
Cua aura popular que honra se chama!
Que castigo tamanho e que justiça
Fazes no peito vão que muito te ama!
Que mortes, que perigos, que tormentas,
Que crueldade neles experimentas!
Texto 2- 21º capítulo de Memorial do Convento- José Saramago
“Maldito sejas até à quinta geração, de lepra se te cubra o corpo todo, puta vejas a tua mãe, puta a tua mulher, puta a tua filha, empalado sejas do cu até à boca, maldito, maldito, maldito. Já vai andando a récua dos homens de Arganail, acompanham-nos até fora da vila as infelizes, que vão clamando, qual em cabelo, Ó doce e amado esposo, e outra protestando, Ó filho, a quem eu tinha só para refrigério e doce amparo desta cansada já velhice minha, não se acabavam as lamentações, tanto que os montes de mais perto respondiam, quase movidos de alta piedade, enfim já os levados se afastam, vão sumir-se na volta do caminho, rasos de lágrimas os olhos, em bagadas caindo aos mais sensíveis, e então uma grande voz se levanta, é um labrego de tanta idade já que não o quiseram, e grita subido a um valado, que é púlpito dos rústicos, Ó glória de mandar, ó vã cobiça, ó rei infame, ó Pátria sem justiça, e tendo assim clamado, veio dar-lhe um quadrilheiro uma cacetada na cabeça, que ali mesmo o deixou morto.”
Viu só de onde José Saramago tirou inspiração para fazer tal texto? Observe: é a mesma crítica. No primeiro, D. Manuel é criticado pelo velho do Restelo, uma espécie de inconsciente popular português; tal rei, a fim de trazer tesouros da Índia, recrutava os homens portugueses, mesmo que à revelia deles, e os mandava ao Oriente. Muitos morreram e, nas despedidas, as mulheres, amigos, pais e filhos choravam de dor. No segundo, é D. João V que convoca os portugueses de todas as partes para trabalharem na construção do Convento de Mafra; ainda que à revelia, eles vão, por isso é que José Saramago torna ao antigo texto camoniano… Desafio pra você: Com que finalidade Saramago escreveu isso?
FALA DO VELHO DO RESTELO AO ASTRONAUTA
José Saramago
Aqui, na Terra, a fome continua,
A miséria, o luto, e outra vez a fome.
Acendemos cigarros em fogos de napalme
E dizemos amor sem saber o que seja.
Mas fizemos de ti a prova da riqueza,
E também da pobreza, e da fome outra vez.
E pusemos em ti sei lá bem que desejo
De mais alto que nós, e melhor e mais puro.
No jornal, de olhos tensos, soletramos
As vertigens do espaço e maravilhas:
Oceanos salgados que circundam
Ilhas mortas de sede, onde não chove.
Mas o mundo, astronauta, é boa mesa
Onde come, brincando, só a fome,
Só a fome, astronauta, só a fome,
E são brinquedos as bombas de napalme
Depois de ler isso tudo, aposto que você já sabe mais ou menos o que poderá ser perguntado. Ou não?