Viagem Pela Xícara de Chá

O olho da serpente vigia o fundo da xícara de chá.
A baleia morta
Entre as pedras quentes da praia
O sangue do inocente
Banhando o punhal do justiceiro
O grito coletivo de gol em final de partida
A borboleta lilás
Despedaçada no farol do táxi
A chuva em boa hora
Lavando a alma da terra
O eclipse, a estrela cadente, o rabo do cometa
No céu riscado por satélites e aviões a jato
O vestido da moda nos olhos da empregada doméstica
O sorriso do galã nos óculos da moça feia e só
Que toma chá de olho de serpente no bar que faz esquina com o vento
Europa, Haiti, Java , Bali
E o Papa, que fala tantas línguas
Emudece de dor
E Deus, arrependido do que fez
Reinventa a paz do tacape
O disco de blues tocando no centro do vulcão
É fogo, é lava queimando a mente exausta
Sereias, duendes, Papai Noel, você, Coelho da Páscoa, felicidade
Fazendo de conta que existem

O mármore do altar
Quebrado pela força do tufão
Tormenta no mar
Pescador aflito, velas rasgadas, soltas nas ondas
E tuas pegadas na estrada do meu peito
Vingança endurecendo a alma
Gosto de sangue na boca pintada de cassis
Cavalo negro em pêlo, livre sob o luar
Números, palavras, enganos, telefone ocupado, rádio ligado,
Pneu furado, sinal fechado, tempo parado
Páginas do livro sonhado em branco
E uma árvore cai sem abraçar o menininho
Marilyn, João, Gil, Eric, Kennedy, Jim Morrisson, Kafka, Disney, o Caçador de
Andróides, o palhaço do circo abandonado, Chico, Tom, Jô, Princesa Diane,
Cazuza, Raul, Renato, anjo da guarda, a Outra, Zeca Baleiro, Marina, Al Pacino,
Janis, o tubarão faminto, Forrest Gump, o síndico, você
Fingindo que não me conhecem
Mas passando na minha TV, no vídeo, na revista, na rua, na memória, no vinil
Empoeirado, no CD, na poesia, no ódio primitivo, no amor insistente
E se vão, como se eu não os tivesse criado
Na xícara de chá de olho de serpente
Veneno de escorpião marron
Paralisa o nervo da mão que te busca
E cega o olho que te vê através do escuro
Adormecendo a saudade, devorando o coração
Que demente, ainda te pulsa
Travando a centelha de desejo
Que aquece o sangue que corre nas veias
Estancando a Vida, cheirando a Morte
Rezando para Deus estar certo… Renascer?
Rever a vida com os olhos embaçados e ser mais uma vez
A moça feia e só que se afoga no fundo da xícara de chá de
Olho de serpente