Consentimento
Olha no espelho e a cara de hoje
É nova. Não é a que queria.
É a fortemente consentida.
A barba, os pêlos brancos exacerbam
A presença da cara consentida.
O barbeador alisa a pele flácida,
Deixa-a limpa e ausente de pêlos,
E o rejuvenescimento esperado
Frustra-se e dá lugar aos vincos fortes
Mais fortes que ontem no sítio da boca.
Os olhos tristes descansam por sobre
O granito frio do lavatório.
No percurso, descendo, ele descobre
O pescoço de ontem hoje mais fino
Pele em excesso sustentando rugas
Outras, echarpes desvitalizadas
E soltas por sobre os ombros fincados
Em trêmulos flácidos braços magros.
Já os peitos pendurados
Co-irmãos e também cúmplices
São trágicas testemunhas
De olhos também derramados
Fixos sobre o mesmo frio
Do granito branco e triste.
O espelho, frio, denuncia a vida
Às avessas. E também consentida.
Faca Amolada
Brandida por mãos invisíveis o ar
Golpeia. Desce e corta o tecido
E o espírito em postas opostas
Sangue liberto sem apelações
Sobre o chão da sala terracota.
Inertes e sem defesa, partidos
Olham o talho, vísceras abertas.
Vermelha e escorrendo entre ladrilhos
Frios e indiferentes. Esvai-se
Inteira, sem alternativa, a vida.
Amolado um gume, afiada a lâmina
O sofrimento, ora fino e miúdo
Agudo, penetra o corpo, exato.
Rombudo o outro gume, no tecido
O sofrimento bruto e ora grave
Cria hematomas, rasga-o impreciso.
Deter os golpes, impossível: mãos
Físicas, se erguem e inutilmente
Aparam o vento apenas. E pendem
E partem-se, indefesos, os braços
Dilacerados. E desesperados
Autômatos, as mãos o baixo ventre
Acodem e seguram e abraçam.
Corpo e alma fundidos e consortes
Impotentes, prostram-se e estendidos
Exaurem-se assistindo a própria morte.