Cova rasa
Nenhum letreiro, nenhuma flor,
nenhuma vala, nenhum romeiro,
nenhuma lágrima, nenhuma dor …
Nenhuma vida, vela ou veste,
nenhum santo branco ou preto,
nenhum padre brasileiro,
nenhuma sorte, praga ou peste
louva o chão desse canteiro.
Somente a faca cava a cova:
de leste a oeste escreve a morte
no corpo inerte do coveiro.
Mas ao coveiro resta Deus,
acima de todas as coisas,
acima de todos os seus:
acima de suas covas,
acima de suas minhocas,
acima de seus tatus …
Abaixo de Deus,
acima de seus urubus.
II. Acordo
Façamos assim:
Eu curto minha poesia
e você curte sua novela.
Você passa seu tempo útil
e eu repasso meu tempo inútil.
Você acende as lâmpadas
e eu apago as lâmpadas.
Ou seja:
Você me lê com seus olhos imaginários
e eu te escrevo com minhas palavras cegas.
III. Dedução infantil
Todos os anjos e pássaros e revoadas de crianças
em todas as suas legiões.
Todos os bichos e plantas e pés de crianças
em todas as suas florações.
Todos os mares e rios e piracemas de crianças
em todos as suas aluviões.
Subtraindo-se Deus do mundo,
adicionando-se Deus ao mundo,
ou mesmo, dividindo-se ou multiplicando-se Deus
por toda ave, por todo peixe, por toda flor,
na vida que se esvaziar de crianças,
não resta amor …
IV. Metereológico
Cada mecha de nuvem passeia chumbo sobre mim.
Deve pesar na consciência do céu esse floco branco em meus cabelos
e essa lágrima infinita em meu caminho …
O céu, quando se derrama em pó, aponta o meu descaminho.
O céu está nevando uma palavra repetida, inverno após inverno.
O céu apenas pede desculpas pelo último verão,
quando fez chover forte essa palavra-muda em minha vida …