O Prazer Revisitado

Há prazeres em demasia
na desordem do dia.
Pode-se comer chocolate, beber, fumar,
cantar blues, dançar samba e foxtrote
depois chutar lata numa rua vazia,
às cinco, naquele lusco-fusco
em que não se sabe noite mais,
ouvindo o primeiro apito
das fábricas e a zorra dos gatos,
na escandalosa corte de uma fêmea
ou na disputa de um devoluto
esqueleto de sardinha,
admirar a tez e o formato
das mulheres no metrô de São Paulo,
de modo platônico ou cúpido;
com alguma audácia, puxar papo,
dizer-lhes frases galantes,
uma bobagem qualquer sobre o tempo,
o quasar, o pulsar, o buraco negro
ou sobre o desenho do hipocampo.
E se delas emanar promissores acenos,
algo assim como um retalho de sorriso
que dê algum sentido à química dos corpos
e amplie nossa estreita geografia,
lícito é fazer a elas propostas obscenas,
amá-las com êxtases e desenvolturas
mais adiante, em qualquer lugar,
pois serve o muro, o catre
a fenda lunar. Na paisagem insólita
ou no lugar infame
o exercício do amor é mais bonito.
Prestante, bom, saudável,
seja sempre cultuado e praticado,
à moda índia, lusa ou grega,
coleante, scherzo, allegro, socado, espremido,
ainda que a sombra da fome e do vírus
ameace o seu mister tão cintilante.
Toda flor, todo sumo,
qualquer corpo divinal, entreaberto,
um convite ao mistério insondável
da estrela que trazemos no peito, incandescida.
Serve para conúbio a merceeira, a jornaleira,
a gondoleira, a coleguinha ao lado,
a musa e a prostitantra: bandalheira
nos liberta e felicita, vai bem
em qualquer retábulo de mármore,
franja silvestre ou ângulo do verão
abaixo destes trópicos, a um tempo
mui safados e mui tristes ­ seja minha
a alegria; se quiseres, sirva-te do pranto.
Os tímidos poderão sonhar com Sharon Stone
de modo viril, gaiato ou trêfego
ou virar de lado e dormir
sem contrato com as auroras,
que o futuro é um absurdo compromisso.
Pode-se lustrar os sapatos na praça
ouvindo o canto dos passarinhos,
pensar que a vida afinal, não pode ser má
se existem engraxates, sapatos, passarinhos.
Podemos dizer frases de Artaud ou de Nietzsche
para nós mesmos, pois recitar os loucos,
compõe a ronda de ser sozinho.
Renunciar ao diálogo com a suburbana
mais cortejada e bonita, às paixões,
à luxúria, como faziam os filósofos,
encher a cara e chorar amor perdido,
amor bandido, amor traído, qualquer amor
triturado na máquina cotidiana,
com sua carga de dor, seus emolumentos.
Pode-se forrar a cama e deitar
à espera da boa morte ou sopesá-la
à distância e louvar não havê-la
irmã, mãe ou consorte,
enquanto se prega botão num casaco velho.
Renunciar, à máscara
que nos distancia dos políticos
e nos aproxima daquele santo, o Francisco.
Com algum sacrifício, renunciar à rosa,
à fulô agreste, mas não à primadona Rosa,
à Rosinha dos Cataventos, a qualquer
róseo quadril abaixo dos quarenta e cinco
nivelando o macho em sua primitiva
equação e o reduzindo
a uma alegre operação aritmética.
Mas sempre é tempo de esvaziar
o tambor do revólver, cegar
o gume da faca: tempo de o ódio ceder
e o amor exalar
o primeiro suspiro pela vida qualquer,
a do homem, do pirilampo, do rato.
Sempre é tempo de festejar a pujança,
redimir satanás, a bactéria, a barata.
Pode-se trancar o quarto, fechar
o caderno de exercícios,
ouvir e sonhar que são suas
as canções de Sinatra, Jobim e Lennon.
Santo Zeus! Deus dos homens!
Quantos são os pequenos enlevos
e os grandes embevecimentos!
Tudo que o dinaro dé, bicho de pé,
cerveja gelada, boi na invernada, muié pelada,
mandar às picas a poesia hierática, quer dizer:
aportar no sol do verso, como fez Cabral;
exumar Adão do barro como fez Manoel.
Diz a lenda que é permitido
fingir-se de morto e azarar o coveiro;
fingir-se santo e traçar a mãe do terreiro.
Quede maior volúpia que plantar
couves num canteiro de quintal,
saciar com seus talos a fúria larval
pra que o mundo preserve
a beleza e a borboleta.
Mors-amor é tudo é permitido:
o sacro e o profano, memória e olvido,
entortar o sim, dizer NÃO,
a mais formidável palavra
em todos os dicionários, a inaugural,
comer o idioma com farinha,
hablar tupi or not, desdizer,
botar esquadro no inimigo, trabalenguas
em seu crepúsculo ou inventar
um idioma todo seu, mas ditirâmbico,
adequado ao contato de terceiro grau.
Pode-se fingir leitura em livros vagabundos,
achar predicativos em nossos poetinhas
enquanto se trama uma maneira
de ludibriar o fisco ou passar incólume
pela próxima encruzilhada ou semáforo.
Quase me deslembro: assoviar qualquer canção,
rolar na grama com os cães, os índios e as crianças,
rir em velórios, peidar em cerimônias,
desmontar as arapucas e soltar os passarinhos
nos prados e nas praças, prover os engraxates
com dinheiro suficiente para a compra de sapatos,
honrar a natureza com assédio sexual.
Mas não se iluda, meu leitor sincero, meu irmão,
o preço do paraíso é a eterna perseguição.
Há hordas mercenárias
querendo desbotar os teus retratos,
lacunar a coleção de figurinhas
tomar posse da bituca do cigarro,
chamar teu nome no meio do sarro,
quebrar teu santo de barro,
dar descarga no teu sonho lindo.
Querem apagar o teu arquivo,
ensombrecer teu riso,
esfregar no teu nariz
a pletora das proibições.
Furte beijo, assovie e chute lata,
engrosse a passeata,
mas escreva: vão tentar
te dar emprego e gravata,
vão botar o teu retrato
na lista dos procurados
e teu precioso corpo na fila da necrópsia.
Teu gozo será tua aniquilação.