Dublê de Alma e Outros Poemas

Ando à toa na vida
catando cacos
do que sobrou da caminhada.
Pedaços que ficaram
por aí evanescentes
na solidão das brumas.
Há um deserto de coisas & palavras
albergado
no bazar de uma casbá
em que me dão preço
num leilão de partes
que restaram deste corpo.
Me anunciam ao preço mínimo,
e nem assim
consigo que me comprem.
As asas perdi-as no Alabama
numa sessão de blues & ragtime,
o outro tinha um royal streat flush;
dos pés só me ficaram as unhas
estas que tu vês como colar
lanhando meu pescoço;

das mãos eis os cotos
que no barro escalavro
a minha escrita;

os olhos joguei-os aos peixes
para aumentar a carga de fosfato.

Apenas a fala que te falo agora
me foi concedida em fogo de santelmo.

– E a tabuleta à testa?
– Escrita em sânscrito,
mas traduzo:

– Vendeu o corpo, e a alma vai de quebra!

GOMOS DO SILÊNCIO

De tanto ouvir nada
tudo fica muito.

Fruto oferecido
ao meu paladar
se me entreabrindo
polpa de apetite.

Vem se mastigando
num castigo surdo
sussurro macio
de cioso som.

O fruto palavra
de doce mascavo
repuxa viscoso
no tacho da boca
mel caramelado.

Nas paredes brancas
escarpas afiadas
os dentes sedentos
língua lambe-lambe
lambuzando a cara.

De comer no entanto
tudo fica pouco
já que somos muitos
de uma mesma boca
ciciando o que fica
na sobra dos dentes
os fiapos sitiados
na ponta da língua
prontos para o gesto
de broca palito.

Gagueja a sintaxe
britadeira grita
em solo de rocha.

Há que repetir
poundianamente
o tripé poema
os gregos de Tróia
cavalo de phanus
na sela do logus
dança a melopéia.

Aprendiz silente
é quando descasco
a casca do fruto
e sorvo seus gomos
o musgo da polpa
no vão do barulho:
Babel ó Babel!
Dá-me a confusão
as língua de fogo
queimando meus sonhos.

De tanto ouvir muito
tudo fica surdo
e se instala o mudo
silêncio do mundo.

A canção sozinha
não da solidão
mas a solitária
sempre perseguida
o fruto calado
que abrirá os gomos.

Este fruto muda
de cor e de rumo
camaleão ágil
no repto do rapto
valquírias aladas
pousam na paisagem
de ontem e de sempre
e as muitas sereias
no rastro de Ulisses
reinventam os mares.

Todas já passaram
além Bojador
todas já forjaram
um céu meridiano
no aço do seu fio
o corte cortante
o corte cortador.

No sumo da palavra
a gota se enxuga
e lava a palavra.

Nada há de novo
no rio corrente
onde banho a fruta.

Esse recorrente
ato da procura
é que me alivia
do novo especioso
ato da invenção.

No incêndio afogado
sei-me palimpsesto.
Musas dos irmãos
socorrei-me musas
e deitai comigo.
Nascerão do incesto
clones de mil faces
anjos de asas tortas
um decamerão
frouxo e esparramado
de um miglior cantor
para um minor fabbro.

SONATA PARA IR À LUA

Desnudo já me dou de mim doendo
na doação das folhas da floresta
que vão caindo sem saber-se sendo
pedaços de nós na noite deserta

A lua imponderável vai ardendo
cúmplice em nossa luz de fogo e festa
Meus braços são dois galhos te dizendo
que o forte às vezes treme em sua aresta

Esta outra face frágil de aparência
que só aos puros é dado conhecer
no abraço da paixão e sua ardência

Mesmo cego de mim eu pude ver
e sentir no teu beijo a clara essência
que faz do nosso amor raro prazer